NOSSA PAIXÃO PELAS CHUTEIRAS

Fabrício Carpinejar e Mário Corso

O homem nunca compra sapato. De modo nenhum. Esqueça. Nenhum heterossexual compra sapato. A afirmação é absoluta.

O que ele realmente procura é comprar uma chuteira ao adquirir um sapato. Arrebata um par que se assemelhe a um airbus, de bico duro ou de formato bélico, que tenha uma couraça intransponível às fincadas dos zagueiros. Ele pensa em se defender com os pés, não se soltar ou se mostrar. Desde o kichute da infância é assim: o tênis pode ser feio, básico, despojado, o que vale é sua resistência, seu formato de capacete de moto, aguentar o levantar de pedras, latas e problemas. O que pesa é sua inviolabilidade, que dure o ano letivo inteiro.

Todo homem é um jogador profissional fracassado ou filho de um jogador frustrado ou neto de um quase jogador. O futebol veste os pés como um mal de família, um legado genético.

A sorte das esposas e namoradas é que as chuteiras estão cada vez mais bonitas e seus gêmeos à paisana acompanharam a moda nas vitrines. As cores disfarçam, mas a tradição se mantém.

Estamos marcados por uma experiência transcendental: é impossível esquecer a sensação de domínio ao colocar uma chuteira e sair pelo gramado. As pernas afundam na grama, é necessário equilíbrio e coordenação motora com os andares das travas, quase como um cavalo nascendo, erguendo os joelhos para o orgulho dos pais. O homem somente aprende a caminhar com chuteiras. Antes era menino. Assim como a mulher somente aprende a caminhar com salto, antes era menina.

A chuteira é o salto alto do homem - ele ganha igualmente altura como a mulher. Amadurece; as esporas saltam. O homem está mais forte com a chuteira. Cresce em tamanho e proporção. É um anabolizante natural.

Nesse instante descobre que era aquilo que seus pés sempre pediram: um calçado para chutar e para correr. Uma conjugação perfeita de leveza e força.

Quem já amou uma chuteira busca nos sapatos comuns o arquétipo de uma sapatilha guerreira, de uma botina de caçada. Não há como se contentar com menos, com frescuras e qualquer coisa que tenha franjinha e combine com o cinto. O cadarço deve ser corda de varal, para amarrar o corpo. Corda de pião, para girar e não provocar tontura.

O bom sapato é uma chuteira civil. Escolhemos a versão como quem examina um arsenal militar, pegando na mão para sentir o peso. Depois testamos a ponta, imaginando bater as canelas adversárias, chutando carinhosamente a bola. Qualquer homem numa loja desfere a perna ao ar no momento de testar um calçado. Repare, ficará pouco tempo sentado no sofá. Pisará firme, baterá a sola como um tambor, a espantar a areia do couro.

A chuteira é um ovo de dinossauro. Busca-se dentro daquele invólucro o monstro da arquibancada comemorando o gol.

Um pé masculino se sente pleno correndo de chuteira: viril, atento, esperto. Sem ele, não é possível sair para enfrentar as dívidas. Um homem quer algo que lhe ajude a criar raízes e que evite o escorregão. Algo tão seguro quanto um carro com tração nas quatro rodas.

É desaconselhável comparecer a uma entrevista de emprego desprezando os cuidados com a aparência. No primeiro encontro a mulher troca de roupa dez vezes e se maquia durante duas horas. O homem pretende saber unicamente qual o sapato é a chuteira mais adequada para chutar o medo e dar ao mundo o melhor efeito de vôo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vidas Passadas ou Vidas Amarrotadas?

O importante é que emoções eu vivi

Estamos há 0 dias acertando a premonição do futuro